Dependência latinoamericana, por Elisabeth Zorgetz
Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia, já diria o paradigmático dramaturgo. Pensar o drama as políticas públicas do transporte, onde se insere o transporte coletivo, é por na mesa um arranjo de muitos tons. Polêmicos, perigosos e comprometedores tons. O desalinho dessa trama é político, todos sabem, mas seu molde é a economia-mundo, onde o Brasil é apenas mais uma coluna da dependência latinoamericana.
Recordo da denúncia do camarada Odailson Aranha, sobre o estado decrépito dos pontos de ônibus, na qual fui questionada sobre a responsabilidade, no que lhe respondi: o Secretário de Desenvolvimento Urbano afirmou que os pontos de ônibus são responsabilidade da prefeitura. No entanto, essa realidade é uma previsão contratual: existem diversas cidades país afora onde as empresas, naturalmente, são responsáveis pelos pontos em estrutura e conforto, informações ao usuário, interatividade e acréscimos culturais nesses ambientes, através de parcerias com projetos sociais.
Mais uma vez, o poder público municipal se mostra prestador de serviço ao empresariado, e não ao cidadão, sufocando qualquer fôlego do municipalismo libertário, como Bookchin coloca. Para elucidar melhor essa torrente ininterrupta de terceirizações, leilão do espaço público, agrário e industrial, tal como a aproximação política da estrutura neoliberal, retorno a Bambirra, um dos grandes nomes brasileiros do pensamento crítico latino-americano do século XX e começos do XXI.
O conceito de dependência é introduzido pela autora caracterizado como uma situação condicionante, ou seja, sua permanência sobrevive através de relações simbióticas desarmônicas, em que o desenvolvimento e expansão de certas economias condicionam e submetem outras. Tendo em conta a crise estrutural que se estabelece como fator comum aos países latinoamericanos, a dependência irá se configurar aos moldes específicos de cada país, adaptando suas estratégias em torno do ciclo do capital para cada estrutura já concebida historicamente.
Nesse contexto, a aplicação da teoria da dependência nas tentativas de análise das conjunturas econômicas dos países latinoamericanos se apresenta como um novo rigor analítico, um novo olhar metodológico que buscará níveis explicativos mais concretos, contrapondo-se à ciência tradicional. O ponto decisivo, que marca a disparidade entre as a abordagem da dependência e a ciência burguesa, se dá através da consideração da pré-existência, para a última, de um campo de possibilidades que acabariam por conduzir todas as economias ao um capitalismo desenvolvido, se o empenho necessário fosse executado nesse sentido. De acordo com o olhar da dependência, a superação da mesma em determinadas economias, é irrealizável através do próprio estímulo capitalista-industrial, ainda mais agravado num sistema de integração da economia mundial, onde as relações de dependência entram num ritmo mais mecânico, acelerado e conseqüente.
As condições de desenvolvimento de um capitalismo industrial nos países como o Brasil são gestadas a partir de prerrogativas políticas e econômicas que estão associadas à lenta formação do mercado nacional e da afirmação de uma burguesia oligárquica após a dissolução da situação colonial. A própria expansão dos mercados internos para a absorção dos produtos industrializados de economias desenvolvidas, criará um inchaço nas demandas internas que propiciará a industrialização nacional. Certamente, situações de crise do processo industrial, como a Primeira Guerra Mundial para o mercado europeu, favoreceram o processo de substituição de importações e fortaleceram a posição dos países dependentes no sistema econômico mundial.
Temos transformações modernizadoras responsáveis pela adaptação desses novos mercados industriais, primeiramente através da organização social da produção, alicerçada pela formação do livre mercado de trabalho, embora tenhamos que lidar com as contradições da coexistência de formas de servidão e semi-escravidão nessas mesmas bases de produção. As próprias estruturas internas agregam novas classes e novas relações de produção, mas apenas redefinem seus agentes dominantes. E como é muito comum aos países latinoamericanos dependentes, a dificuldade da concepção de uma burguesia industrial independente das oligarquias proprietárias de terras, controladoras do processo primário-exportador, que não será superado como protagonista da dependência.
No entanto, apesar do papel medular do setor primário nessas economias, o período iniciado após 1945 encontrará uma forma ainda mais efetiva de ampliar e aprofundar a dominação das economias desenvolvidas sobre as dependentes. A partir de então o mercado é reconfigurado para atender os fluxos de capitais e ativos, superando o modelo capitalista tradicional exportador. Nesse sentido, é evidente o forte vínculo que se estabelece entre a dependência tecnológica e a dependência financeira, relações que se estendem em proporcionais graduações até uma dependência política, necessariamente.
Há, ainda, duas situações distintas de dependência, que estão ligadas por uma condução indutiva, sendo a primeira de caráter importador para satisfazer as demandas internas de bens de consumo duráveis, que são em geral produtos caros e ainda sobrecarregados com taxas protecionistas. Tal condição levará a segunda situação de dependência, quando a primeira situação se torna desvantajosa para o consumidor e os grandes mercados, levando assim à penetração de sucursais de empresas estrangeiras no interior de economias dependentes, levando, muitas vezes, a um movimento aglutinador, incorporando a pequena indústria nacional e a subjugando.
No Brasil teremos o conflito entre a manutenção da estrutura agrária e a necessidade de mercados, fazendo notória a incompatibilidade dos modelos tradicionais latifundiários com o pleno desenvolvimento do capitalismo, além da dificuldade que se impõe para a proletarização campesina. Existe também a contradição entre a necessidade burguesa de uma política econômica nacionalista, que se mostrou frágil durante períodos populistas ou ditatoriais, e a dependência estrutural consolidada nesses países. A própria existência da condição dependente inviabiliza o fortalecimento de uma burguesia industrial nacional de tal modo que não teremos, nessas economias, representantes autônomos de uma industrialização nacional, mas sempre o quadro de uma burguesia submetida.
A contradição entre a necessidade de divisas para a industrialização e o controle externo do setor exportador em países dependentes no setor secundário aponta um estágio primitivo dessas economias em processo de industrialização que o caso brasileiro também já cruzou, mas superou em certo modo, pelas condições históricas e estruturais internas. O período em que esses países alcançaram essa problemática se tornou muito mais dramático de se vencer devido às transformações no capitalismo-mundo, criando um processo de agudização da dependência, sempre em progressão.
É através de análises minuciosas como essa que as correntes socialistas devem angariar forças e se fazer entender, liberta das contradições do capital. Há muitas tarefas, e a primeira delas talvez seja dissolver os pré-conceitos sobre a esquerda brasileira. Lembrar ao povo que o vermelho é a cor do reinvento, não da traição.